Onze estreias – Fred Linardi


É instigante a singularidade do universo de cada um, até mesmo de quem vive tão perto da gente e tem como hábito partilhar porções do mundo que apreende. Conheci o Fred Linardi no início de 2017 e desde lá nos tornamos colegas de pós-graduação e amigos. Não demorou para que soubesse da existência do Pacífico, seu palhaço, e de seu projeto de mestrado: a escrita de uma biografia para sua professora, Gabriella Argento, a Palhaça Du’Porto – ou a primeira palhaça brasileira a integrar o Cirque du Soleil, como ficou conhecida na mídia brasileira.

Uma das conversas que tive com Fred, mais uma reportagem do IPHAN sobre o trabalho de Verônica Tamaoki, junto ao Memorial do Circo, para a preservação da história do circo no Brasil, me levaram a organizar um número da Travessa em Três Tempos dedicado à temática. A publicação saiu em julho de 2017 sob o título “Todo mundo já andou na corda bamba” e entre os autores estava o próprio Fred com o conto “O solo de seu Sinhô”. Mais tarde ele aceitou ingressar à comissão editorial da revista e nos tornamos também colegas de trabalho, como se já não o fossemos.

Mas do Pacífico, até então, eu só tinha ouvido falar. O conheci apenas em abril de 2019 em meio a Panaceia Literária, uma celebração à literatura organizada pelo Fred junto com Andrezza Postay, Gisela Rodriguez, Irka Barrios e Simone Vasconcelos. Naquela edição, a terceira e última se não me engano, eu tinha me oferecido para me juntar à trupe. A homenageada da vez seria Anais Nïn, estaríamos todos vestidos num tom cabaré anos 20 para falarmos da vida e obra da autora. Foi assim que dividimos o palco, que na ocasião se tratava do espaço entre as mesas no antigo Von Teese. Eu encarnaria a própria Anais Nïn lendo trechos de seus diários e Pacífico, no final da noite, faria uma releitura de A casa dos incestos, num texto autoral que depois das devidas adaptações virou A casa dos insetos.

Foi ali que a imagem do “meu amigo escritor, que também é palhaço” se dissociou e apreendi um pouquinho da existência de Pacífico, que se dá por causa e a despeito de Fred Linardi. Ainda assim, só uma espiadela no universo de nariz vermelho. Vieram nossas defesas, a pandemia, muitas dúvidas no meio do caminho, prêmios literários e, em 2022, o que um dia foi projeto virou livro e ganhou uma edição belíssima pela Editora O Grifo, com capa de Maria Williane.

Onze estreias chegou em minhas mãos repleto de histórias que o precediam e antes que eu fosse capaz de lê-lo outras se somariam a estas. O lançamento se daria em agosto, no Teatro da PUCRS, e traria junto consigo uma surpresa espetacular: Insolação, um solo de Gabriella Argento. Para quem acompanhou Fred desde o início era a chance de alcançarmos um pouquinho mais do universo que ele nos trazia. Para o Fred era o meio de nos provar que seu livro se tratava de uma história real, Gabriella nunca fora invenção de sua cabeça. Mais do que isso, ele estava certo o tempo todo: ela era incrível. Foi meu segundo encontro com Pacífico que, dessa vez, foi auxiliar de Du’Porto no palco, cuidando da trilha sonora. Outra surpresa para nós e para o próprio Fred que soube dias antes que precisaria substituir a musicista que acompanha Gabriella.   

Além do espetáculo, Gabriella ministraria um workshop de degustação nos dois dias que seguiam a apresentação, uma oportunidade de sermos introduzidos à menor máscara do mundo. Mas eu estava dividindo meus dias entre seguir meu itinerário e entender o que estava acontecendo em minha vida pessoal, no que considero as duas semanas mais confusas desde uma soma considerável de anos. Uma oficina de palhaço não estava na minha lista e foi sem programação prévia que entrei no Ateliê de Cultura da PUCRS depois de ter saído do lançamento convencida de que aquilo era o que eu precisava para colocar meus pensamentos em ordem.

Quando, na primeira dinâmica, Gabriella nos pediu para responder em uma palavra como estávamos nos sentindo, confusa foi a que usei. Segui me sentindo assim durante os dois dias de curso já que a realidade fora daquela sala continuava a mesma, mas não errei ao achar que precisava estar ali. Gabriella me mostrou que a confusão podia ser um ótimo sentimento para aquele espaço e, aos poucos, fui permitindo que outros sentimentos se somassem ao meu estado de espírito. Até que uma fagulha formiguinha saída de um canto escondido acertasse em cheio meu coração deixando-o em véspera de ano novo e fizesse eu me lembrar de algo em mim do qual eu sentia muita falta.

Foi a terceira vez que encontrei Pacífico, mas a primeira que pude vê-lo com a mesma lente vermelha que ele usava na ponta do nariz. Meus olhos são a minha alma, minha alma é meu nariz. Foi o que a Gabriella me ensinou naquele dia e foi o que li ao chegar ao texto de Fred. Há muitas vozes que ressoam das páginas de Onze estreias: a de um narrador habilidoso que nos conduz de evento em evento da vida de Gabriella, a da própria Gabriella e a do Pacífico mais uma vez. Ali um Pacífico aprendiz, se descobrindo antes de ganhar nariz, nome e figurino.

Fred, ao nos conduzir pela vida de Gabriella, nos conduz pelo universo do Palhaço e dali para dentro de nós mesmos. A começar pelo entendimento de que o nariz vermelho não é um adereço, mas uma máscara. A menor de todas, aquela que leva o palhaço (e a nós, se assim o quisermos) a despir as máscaras sociais e aceitar que somos falhos. Não apenas aceitar, aliás, mas nos divertir com isso; abraçar o ridículo que existe dentro de cada um de nós. Em alguma passagem perto do fim (ou no meio quem vai saber procure no texto), Fred escreve que o público ri do palhaço para não rir de si mesmo numa espécie de transferência da falha que não consegue ver em si.

É esse o lugar generoso que Gabriella Argento vem ocupando desde que encontrou Du’Porto. Ao ler Onze estreias você vai perceber que não há nada de romântico nisso, mas há, sim, generosidade naquela que promove o riso mesmo quando não restou nenhum dentro de si. Algumas das histórias que Fred narra, ouvi da boca  da própria Gabriella entre o solo e os dois dias que compartilhamos em oficina. Nessas passagens eu conseguia ouvir a entonação da palhaça escapando do texto, como se ela estivesse do meu lado me acusando de intrometida por mergulhar na sua intimidade. Noutras fui levada àqueles recantos escondidos em mim dos quais só as formigas vermelhas têm acesso.

No fim, o que o texto de Fred me deixou pensando foi na singularidade do universo de cada um e em como, via de regra, somos incapazes de alcançá-la. Depois pensei que a escrita pode ser um desses recursos que nos levam um pouco mais a fundo na singularidade de alguém, seja a de um biógrafo ou de uma biografada. Todas essas histórias, e outras mais, precederam minha leitura de Onze estreias, ainda assim, ter o livro em mãos e lê-lo foi atravessar alguma rachadura e entrar escondida num recorte do que compõe a singularidade de Fred Linardi. Pela primeira vez fui capaz de apreender um pouquinho do universo do seu nariz.

Onze estreias – Fred Linardi

O Grifo
não ficção
192 p


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