Eu estava no meio de uma leitura crítica quando ouvi minha mãe chamar. O Hélio tinha vindo buscar ajuda: uma vaca estava dando cria.
— Tá trancada — foi o que ouvi pela janela do meu quarto. Era o jeito de dizer que o terneiro estava preso, que por alguma razão a vaca não estava conseguindo parir. Deixei o capítulo pela metade e fui no rumo da conversa.
Chego no galpão e a vaca já está no brete, mugindo e se esgoelando no mugido, as patinhas do terneiro apontando e já atadas. O princípio básico de um parto de vaca assistido é amarrar as patas do terneiro e puxar para baixo ajudando a futura mamãe e a força da gravidade.
Foi, então, essa a cena que encontrei logo da minha chegada: minha mãe de testemunha, parada e com as mãos na cintura, o Hélio pendurado na corda e a vaca, coitada.
— O que eu faço? — perguntei, já arregaçando as mangas do moletom, pronta para introduzir meu braço onde fosse preciso.
O Hélio me encarou no grão dos olhos e soltou um belo não sei.
Pronto, tive que desencantar da memória todos os vídeos de parto que assisti no instagram para escrever meu romance, as cenas de seriado de médico e o conhecimento intrínseco de cinco gerações de antepassados que, dizem, toda mulher pode acessar na hora de parir.
Meti as duas mãos na barriga da vaca, tentando acalmar o bicho. E ela berrando e o Hélio puxando e eu pensando com meus botões: não dá nem pra gritar um empuuuuura; pra gente se sincronizar no empurra e puxa. Foi aí que eu me dei conta de olhar para musculatura da parturiente para ver se ela estava tendo contrações e gritei pro Hélio:
— Para. Tem que sincronizar.
— Quê?
— Tem que ver quando ela tem contração pra puxar.
Eu já cheia de preocupação da vaca estar sofrendo violência obstétrica e o Hélio pendurado naquela corda me olhando como quem quer esganar a mim e as cinco gerações de antepassados que eu tinha invocado fazia pouco. Mas o focinho do terneiro já tinha começado a apontar e minha mãe mandou tirar a placenta de cima da narina do bicho e foi o que eu fiz. Mais um pouquinho deu pra ver a mandíbula e a língua pendendo pra fora da boca.
Deu um engasgo e um aperto no peito de achar que aquela língua pendida daquele jeito já era sinal de que a gente tinha chegado com atraso. Não falei nada para não agourar, mas a preocupação já estava ali instalada. O Hélio e a vaca forcejando, eu me revezando entre o focinho do terneiro, a barriga da vaca e uns calma, bichinha, que vai dar tudo certo. E deu, liberada a cabeça o resto é igual ao parto de uma criança, o corpinho deslizou para o mundo de uma vez só.
Saí correndo para amparar o bichinho antes que chegasse no chão. A vaca já respirando mais aliviada, o Hélio ofegante, a minha mãe ainda com as mãos na cintura, o terneiro envolto em restos de placenta e líquido amniótico. Abriu os olhos e o bolo no meu peito se desfez.
— Tem que deixar ela lamber a cria — minha mãe falou e, por um segundo, considerei se ela queria que eu colocasse minha língua à disposição.
3 respostas para “Doula de vaca”
Amei 😂😂😂😂 já fiquei imaginando tu lambendo o bezerro!!!!! Adoro essas histórias!
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Que experiencia!!
Amei.!!
Você criada no campo tem muito que nos contar.
Fico aguardando o próximo episódio.
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👏👏👏🙏🌹😘
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