Eu não sei de quem foi a infeliz ideia de fazer uma santa ceia naquele dia. Deve ter sido do Flavinho que só falava em parábolas depois que começou a fazer catequese. Não que o Flavinho fosse lá muito chegado nas coisas da igreja, aliás, naquela idade nenhum de nós éramos, mas ele andava enrabichado pela Clara, uma das noviças da paróquia. Aí já viu, é versículo para cá, versículo para lá e creio em Deus Pai cada vez que via a menina passar na rua. Até aí tudo bem, porque as noviças eram mesmo de fazer a gente querer ler a Bíblia e tudo. Agora como foi que os outros toparam a ideia é que eu ainda fico me perguntando, mas o caso é que teve uma santa ceia. E teve pão, suco de uva e doze piazotes se fazendo de apóstolos, mais o Flavinho, que era óbvio que queria ser Jesus. Não lembro direito quem era quem, só lembro que o Pedro ficou sendo o Pedro mesmo porque aí não precisava mudar de nome e eu era o Judas. Fui eu que escolhi, achava o apóstolo mais interessante e, também, era um dos únicos que eu sabia o nome.
A função começou cedo com o Andrezinho indo buscar o pão na padaria. Nós tínhamos duas grandes preocupações. Uma era que faltasse pão, porque o Flavinho tinha colocado na cabeça que queria ser o mais fidedigno possível e proibiu o Andrezinho de comprar mais do que um só pão, ia ter que render. A outra é que ninguém queria comer pão puro, até fizemos uma vaquinha por fora para comprar um pote de manteiga que ficaria escondido embaixo da mesa para o Flavinho não notar. A mãe do Mateus deixou que fizéssemos a ceia na garagem da casa deles, onde tinha uma mesa grande o suficiente para os doze apóstolos, mais Jesus, e depois ainda poderíamos dormir todos lá e jogar bola no dia seguinte. O Filipe conseguiu o suco de uva na mercearia do tio e o restante de nós só chegou no horário combinado. Cada um trazendo um saquinho da padaria embaixo do braço que o Mateus dava um jeito de esconder o mais rápido possível. O pão oficial já estava num cesto em cima da mesa, junto com os pratos e uns copos de plástico azul escuro que não deixavam ver o que tinha dentro .
A mãe do Mateus ia fazer chocolate quente mais tarde porque o Tomé não gostava de suco de uva, aí os copos não podiam ser transparentes. Também não ia ter pratos porque a ideia era uma ceia meio rústica, mas a mãe do Mateus ficou braba porque ia fazer muita sujeira. Quando o Flavinho chegou, a cozinha já estava cheia de pães, brioches, croissants e amanteigados, fora as geleias, o queijo e o presunto.
No início o Flavinho fez toda aquela cena partindo o pão oficial em pedaços e entregando a cada um de nós. Fazia um discurso para cada um dos pedaços que iam ficando cada vez menores que nem valia a pena passar manteiga. Faltava ainda eu, o Tiago, o Filipe, e o Flavinho para comer o pão sagrado e já quase não tinha mais pão oficial. Foi quando o Flavinho perguntou para o Mateus se, por acaso, a mãe dele não teria um pão para nos emprestar. O Pedro, que já tinha comido o pedaço dele e continuava varado de fome, disse que resolvia a situação e começou a trazer todo o estoque que tínhamos feito na cozinha. O Flavinho até quis ficar brabo, mas também estava com fome e as reclamações não duraram o tempo de fazer o sinal da cruz.
Depois de todo mundo já ter enchido a barriga e até o Flavinho já ter repetido, pela segunda vez, o chocolate quente da mãe do Mateus é que começou a confusão. O Tiago contou que tinha visto a Clara mais cedo e o Flavinho se perdeu todo. A Clara era uma espécie de santa do nosso bairro, tinha gente que dizia que ela tinha até uma auréola no topo da cabeça e que dava para ver toda vez que ela rezava a Ave Maria. Eu nunca vi, mas na época também não duvidei, até porque tem coisa que é melhor não duvidar. Mas para o Flavinho era diferente e a gente sabia por causa do jeito que a voz dele ficava quando ele rezava. A entonação o Pai nosso que estáááááis no céu saía meio esquisita e só acontecia quando a Clara estava por perto. Acho que a Clara já sabia também por que se ela era mesmo da santidade devia entender dessas coisas, mas naquela época eu não era tão esperto e não tinha certeza se ela sabia. Para ajudar meu amigo resolvi contar para Clara dos sentimentos do Flavinho. Foi no dia antes da dita ceia. E quando o Tiago falou que tinha visto a Clara achei que era um bom momento para contar o favor que tinha feito.
O Flavinho foi ficando vermelho e vermelho e as bochechas parecendo que iam explodir e eu sem entender nada. Mas é um Judas mesmo, me disse já todo fúria e os outros rindo e depois me encheu de desaforos que prefiro nem contar. O Pedro tentando acalmar o Flavinho, o Andrezinho rindo que nem uma hiena, o Filipe dizendo mas é tua chance, cara, e eu concordando porque era mesmo. Mas o Flavinho só sabia me chamar de traidor e me acusar de coisas que eu nem tinha feito. Depois começou a falar sobre moedas de prata e sobre como eu que gostava da Clara e que tinha feito aquilo só para tirar algum proveito da situação.
Resolvi partir para os termos bíblicos para ver se ele me entendia e disse que se Judas não tivesse entregado Jesus o mundo nunca teria conhecido a marca sagrada da cruz. Judas faz parte cara, ele também queria o bem de Jesus. Foi eu dizer aquilo que todo mundo viu o Flavinho passar montado em um porco, agarrado nos próprios cabelos. A gente tem é que malhar o Judas e você que é traíra que nem ele, disse lá pelas tantas com o mesmo engasgo do Pai Nosso. Mas, Flavinho como você diz uma coisa dessas? Jesus é amor e perdão e todas aquelas coisas bonitas que a Clara fala, eu disse, mas não adiantou.
Até a mãe do Mateus ficou assustada e foi ver o que era aquela gritaria toda. Tia Michele, liga para meu pai que esse Judas vai ter o que merece. Foi o que todos nós ouvimos o Flavinho falar enquanto corria para o lado da mãe do Mateus.

A malhação de Judas – Taiane Santi Martins
In: Conte outra vez. 30 contos inspirados em canções de Raul Seixas.
Org. T. K. Pereira – 2019