** 06 **
Apressada, enche a mochila amarela com os seus bens mais preciosos: o pijama de bolinhas para as noites frias, a fantasia de fadinha – pelo menos o vestido verde e a sapatilha com pompons na ponta, as asas ela terá que vestir para não amassar -, uma muda de roupa e o Pimpão. Caminha até a cozinha, em cima da cadeira alcança o restante dos itens para sua sobrevivência: dois pacotes de bolachas, chocolate e morango, é bom ter uma variedade. Encontra um pacote de salgadinho escondido no fundo do armário, o irmão estava guardando para o final de semana, coloca junto com o restante do kit, àquela hora já tinha ultrapassado a barreira do delito. Não haveria frutas em sua mochila e nenhum brócolis seria levado para o exílio. Aquilo era um ato de resistência.
Aprendeu a virar cambalhota com a irmã mais velha, depois de tanto se pendurar no beiral das portas a mãe resolve a inscrever numa aula de ginástica. Rítmica, ainda é muito nova para ginástica olímpica, é o que a mãe diz. Adora as quartas-feiras que passa no ginásio, o professor acha que ela é um talento. O queixo no peito, a cabeça no chão, as costas deslizando sobre o assoalho como se não houvessem ossos naquele corpinho. Uma circunferência perfeita até concluir o rolinho. A estrelinha foi ensinamento do professor e ela vem aperfeiçoando a técnica nas derradeiras semanas.
Passa a praticar em cima da cama dos pais. Estrelinha, cambalhota, aviãozinho e num passo em falso acaba com o nariz na lajota. Não está sangrando, não é grave, talvez nem esteja doendo tanto assim, mas ela chora como se a perna direita tivesse sido amputada a machadadas. A mãe ouve os berros da cozinha e entra no quarto esperando ver o sangue esparramado pelo chão, um osso exposto, quem sabe. Nada, apenas choro. Onde dói? Consegue mexer? E o ranho começando a escorrer pelas narinas. Nenhuma avaria. Respira, minha filha.
Quando a mãe se acalma e a menina já consegue respirar, o estopim da guerra. Uma proibição: sem cambalhotas e estrelinhas em cima da cama. E só porque a mãe está brava, acaba-se também o tempo de subir pelas portas. São muitas regras instauradas em um só dia, e vejam só, o tombo nem tinha sido tão grande assim. Não há motivos para tamanha reprimenda. Mas a mãe ainda espera um osso saltar de seu lugar a qualquer momento e não há espaço para negociações.
Enfurecida, ela corre para o quarto. Procura a mochila amarela que ganhou de presente no início do ano letivo, é uma boa mochila, cabem muitas coisas nela. Caminha até a cozinha, volta para o quarto. A mãe a deixa sozinha para que se acalme e vai lavar roupas na área de serviço. Ela coloca a mochila amarela nas costas. As alças ficam mal encaixadas devido às asas de fadinha. Ela não se importa. Ela está decidida. Vou fugir com o circo, e vai.
** 08 **
O gato amarelo da tia tem o apelido de jaguatirica. Não é o nome dele. O nome mesmo é Saturnino, mas o tio chama de jaguatirica. Isso é bicho independente, ser de poucos amigos e muitos interesses. É o que o tio fala, mas ele não gosta de gato e isso invalida qualquer argumento. Ela acha que ser independente é uma vantagem e está entediada com a visita. Os adultos tomam chá na sala de estar, ela já comeu todas as fatias de bolo de sua conta – com cobertura de doce de leite, e ainda a cobertura de um dos pedaços da conta do irmão -, seus níveis de glicose elevadíssimos.
No quintal, risca o chão com um graveto, dessa linha para cá você imagina um picadeiro. O irmão já não tem a mesma paciência para brincadeiras de imaginação, mas concorda. Sugere que o poste de luz seja o holofote, e o banco embaixo da goiabeira pode ser a arquibancada. O que acha? Ótimo. Podemos ter um pipoqueiro? Claro. A roseira é o carrinho de pipoca. O irmão quer ser o palhaço, corre de volta para a sala de estar e descola um nariz de plástico com a tia. Ela não quer ser palhaço, mas também quer um nariz vermelho, no fim das contas, se contenta com a permissão de usar o batom da mãe.
Respeitável público para cá, respeitável público para lá, ela abre o espetáculo. O açúcar está fazendo efeito, a oratória dura minutos intermináveis. Uma pirueta, uma rodadinha e as devidas apresentações do grande, do magnífico, do espetacular Pimbolim. Magnífico e espetacular são palavras do irmão, ele teria usado mais adjetivos, mas ela já está impaciente. O irmão não leva muito jeito para palhaço: O que é um pontinho amarelo no meio do mar? Mas ela acha que as apresentações foram devidas, ela acha a piada ótima, o respeitável público embaixo do pé de goiabeira, no entanto, já conhece todo o repertório de pontinhos coloridos.
Segue o espetáculo. Todo circo precisa de uma atração principal, o grande número da noite – da tarde – um desafio a altura de todo aquele açúcar transitando pela corrente sanguínea. Saturnino, o leão. A ideia foi do palhaço, mas a execução será dela. Corre atrás do felino que não tem interesse em fazer amizades. O bicho se esconde entre os arbustos da tia, ela se enfia entre as folhagens. O gato sibila, ela, a domadora de feras, ignora o aviso, enfia os bracinhos entre dois galhos, alcança o rabo amarelo, puxa. Na sala, os adultos ouvem o rugido do leão, o palhaço se atira no chão por conta das gargalhadas. A domadora está por sua conta e risco.
Na volta para casa, os braços com as marcas das unhas do gato e o uso de animais proibido nas apresentações de circo.
** 10 **
É questão de sorte ainda não ter quebrado um osso, não se pode dizer a mesma coisa sobre os esfolados nos joelhos e cotovelos. As pernas são um campo minado de roxos, arranhões e casquinhas ressequidas. Cicatrizes de guerra.
Sobe o pé de eucalipto. Um, dois, três galhos. Não é suficiente. Os galhos se afinam, ela persiste, alcança os mais altos. Consegue ver o mundo dali de cima, ela gosta de pensar que o mundo lhe pertence.
A corda continua presa na canela, procura o lugar adequado para treinar o nó que aprendeu. Passa a corda por cima, passa a corda por baixo e a primeira tentativa de um nó direito falha. Tenta de novo e o nó se torna fácil de desatar, acertou. Agora tem um dispositivo de segurança que ficará ali para futuras escaladas. Amarra a ponta solta em volta da cintura, dessa vez acerta o nó de primeira.
Pula de um galho para o outro até se sentir confiante o suficiente para ensaiar algumas posições de ginástica. Firma o pé esquerdo na madeira, curva o tronco para frente num ângulo de noventa graus, estende os braços para os lados e ergue a perna direita. Inspira e expira num movimento perfeito.
Procura novos desafios, se pendura no galho logo abaixo de onde a corda está amarrada, de espessura suficiente para segurá-lo com as mãos, altura suficiente para sentir um frio na barriga. Coloca o primeiro pé no galho, coloca o outro logo em seguida, está de cabeça para baixo. O sol se põe no horizonte. A corda presa em volta da cintura. Sente-se ensaiando para um número de trapézio fixo, já ouve os aplausos da platéia. A visão do mundo de ponta cabeça lhe agrada.
A superfície do eucalipto é mais lisa do que esperava, a perna escorrega rápido demais. Esqueceu-se de medir a extensão da corda de segurança. Cai em cima do braço esquerdo. Sua estreia no gesso.
** 12 **
É a primeira vez que vai a um circo de verdade, antes só mambembes e palhaços no parque. Está animada, não só com o espetáculo, com a companhia da irmã mais velha. Caminham pela rua de mãos dadas, a alegria de uma cama elástica que a faz saltitar. Hoje o dia é só delas. Agora que não moram mais na mesma casa, a irmã faz as suas vontades, uma espécie de cúmplice para pequenos crimes. A irmã está cursando a faculdade de artes em outra cidade, dessa vez chegou em casa com um piercing no nariz. Ela gosta do piercing, os pais não.
Antes do toldo vermelho e amarelo, um cachorro quente, ela pede um duplo, com ketchup e maionese. Ela sabe que não consegue comer um inteiro, ela sabe que não deve pedir molhos de acompanhamento, a irmã também, mas não se importa. Dia de irmãs é dia de contravenção. Com esforço vence o cachorro quente, ficam as duas impressionadas. Finalizam o crime com coca-cola. Entram e encontram os lugares marcados.
Nesse circo não há domadores e ela não se interessa muito pelos palhaços. Homens dançam com fogo ao som de tambores, é bonito, mas não parece perigoso. A irmã aplaude empolgada. Ela sente uma dor estranha na barriga, culpa o cachorro quente. Não fala nada. Espera o número de contorcionismo. Mais um palhaço entra em cena, segura uma vela, passa ela por baixo da perna como num malabarismo, faz graça com a apresentação anterior. O espetáculo segue, a dor aumenta. Os trapezistas impressionam em piruetas. Ela já não consegue manter a atenção sob a luz dos holofotes.
Chega o número esperado. A contorcionista no picadeiro, o sorriso no rosto da irmã, a contorção no ventre, o sorriso amarelo no seu rosto. As mãos segurando a barriga, a contorcionista com o pé atrás do pescoço, a irmã perguntando se está tudo bem, o som estourando nas caixas, a sensação de estar se mijando, a contorcionista em espacate enquanto planta bananeira, a dor aliviando aos pouquinhos, a calcinha manchada pela primeira vez, a contorcionista agradece os aplausos.
A irmã tem um absorvente na bolsa, não faz comentários constrangedores. Ela amarra o casaco na cintura, esconde a mancha de sangue. Vão embora antes do fim do espetáculo. Não é culpa do cachorro quente.
** 22 **
Paciente escolhe o que vai levar consigo: meia dúzia de mudas de roupas, um chinelo confortável, um pequeno kit de higiene. Não quer carregar mais do que o necessário. Revisa os ítens sem pressa. A mãe liga na última tentativa de fazê-la mudar de ideia. Quem sabe uma viagem para casa? Não mudou, ela segue com o plano. Nenhum sonho será deixado para trás. Aquilo é um ato de liberdade.
É o último dia letivo do semestre. Da faculdade que escolheu dois anos antes. Hoje duvida da escolha, dizem que é fase, dizem que passa. Três meses de férias no seu horizonte de expectativas. Depois de deixar o campus, encontra os amigos no parque para as despedidas. Ela vai se despedir, os outros não, ninguém ali sabe dos seus planos.
Ela coloca o primeiro pé no elástico estendido, confere as amarras na base antes de colocar o segundo. O slackline não está preso muito alto, mas não quer quebrar outro braço por causa de um tombo estúpido. Não é sua primeira vez em cima do elástico. Ela gosta da sensação de procurar pelo seu centro. Arrisca o primeiro passo, arrisca o segundo, salta, cai. Não chora mais por pequenos tombos. Escuta um cara rindo de seu deslize, não conhece o sujeito, é um amigo de um amigo. Tenta de novo e consegue realizar a manobra, uma simples, para iniciantes. É a única mulher no elástico. Ela segue os movimentos, persiste nas manobras.
Ser mulher é andar na corda bamba, mas ela encontra seu equilíbrio. Ela aprendeu como se faz e ela faz o que quer, ela sempre fez o que quis. Ela é decidida, ela ainda acha que ser independente é uma vantagem, ela tem coragem para enfrentar feras mesmo que saia com alguns arranhões, ela sabe se levantar de um tombo, ela sangra todos os meses e o mundo lhe pertence.
Em casa, ela coloca tudo que precisa na mochila amarela, que trouxe de sua última viagem ao Peru. É uma boa mochila, não é muito grande, mas ela não precisa de muita coisa. Ela tem para onde voltar se quiser. Coloca a mochila nas costas, as alças estão confortáveis. Ela vê um novo caminho pela frente. Vou fugir com o circo, e vai.
TAIANE MARIA BONITA. Vou fugir com o circo. In: Todo mundo já andou na corda bamba. Travessa em Três Tempos, n°17. 2017
