Toda vez que olho para meu sobrinho penso que algumas pessoas nascem com a capacidade de comunicar a morte daqueles que amam. Algumas pessoas precisam tocar a morte com a ponta dos dedos para sentir nela a vida que lhes cabe. Algumas pessoas encaram a morte e no fundo da íris do ceifeiro encontram a resposta da pergunta que nunca fizeram.
Eu queria ter estado lá. Eu queria que ele não estivesse sozinho e queria que algo pudesse ter sido feito. Eu queria que não estivesse chovendo, que as pessoas fossem educadas no trânsito e que a merda daquele caminhão não estivesse estacionada na frente do hotel. Se as entregas daquela manhã tivessem sido feitas mais cedo, se o café tivesse demorado mais cinco minutos para ficar pronto, se o sustento de uma família não viesse do horário em que um funcionário bate o cartão.
Eu aprendi que a vida não é feita de se’s e aparentemente a morte também não.
Eu estava no meio de uma aula de teoria da tradução quando o meu telefone tocou. Estávamos discutindo a primeira das quatorze tendências deformadoras dos tradutores quando senti o aparelho vibrar em minha bolsa. Eu preferia ter continuado a estudar as deformações de Berman em vez de desligar o telefone em choque e declarar na frente de toda a turma que eu precisaria sair mais cedo. Se eu tivesse entendido o albergue do longínquo antes, eu teria dito aos meus colegas que a incapacidade de tradução estava estampada na minha cara branca, nas minhas pupilas dilatadas e na falta de ar que eu sentia naquele momento.
Seu irmão sofreu um acidente. Liga para os seus pais, é grave.
Nenhum dos meus colegas letrados, futuros profissionais das palavras, falantes de línguas estrangeiras, conhecedores de teorias e léxicos conseguiria nomear aquilo que mesmo eu tive dificuldade em alinhar em duas ou três frases gaguejadas. Eu preciso ir para o hospital. Eu não sei como chegar lá.
Ali parada na frente do quadro negro sem saber se voltava para minha carteira, se chamava o professor para fora da sala para explicar o que tinha acontecido, se me atirava pela janela e rezava para o tempo voltar atrás, eu entendi que o longínquo não existe. Do mesmo modo que toda tradução é um ato traidor, a ideia de algo remoto, distante é mera ilusão criada por aqueles que inventaram os dicionários. Tolos são os que acreditam saber algo a respeito da vida e do futuro.
Eu tinha passado o final de semana na casa do meu irmão. Tinham se passado dois dias e duas noites desde o momento em que tínhamos nos despedido. A vida não pode mudar tanto em quarenta e oito horas.
No sábado, nós tínhamos discutido porque ele chegou em casa as três da manhã fazendo barulho e eu queria dormir. No domingo, o mal estar já estava resolvido e ele ainda decidiu tirar sarro do meu mau humor sonolento. No sábado, nós tínhamos brigado por causa de uma besteira qualquer que os irmãos brigam e agora a porcaria da voz do outro lado da linha me dizia que o meu irmão tinha sofrido um acidente.
A escola não tinha me ensinado o que fazer naquela situação. Nenhum dos meus professores doutores, formados pelas melhores universidades do país tinha me dito o que fazer quando, às nove da manhã de uma terça-feira, o seu telefone toca lhe pedindo para que você explique para os seus pais que seu irmão está em coma deitado numa maca qualquer de um hospital. Eu não poderia correr nem para o meu pai, nem para a minha mãe pedindo por ajuda.
A primeira ligação que fiz depois de pegar um ônibus sem saber ainda o meu destino exato foi para a minha irmã. A minha irmã não sabe lidar muito bem com situações assim, ela teve uma crise nervosa ao saber que a cachorra tinha morrido atropelada no ano passado. Minha irmã é quinze anos mais velha do que eu.
Eu não podia chorar, eu não podia parecer nervosa, eu não podia mandar o mundo inteiro à puta que pariu porque o meu irmão estava agora em coma num hospital onde eu nem sabia como chegar e nós tínhamos discutido por uma imbecilidade no sábado. Porque eu não podia assustar a minha irmã mais velha que não sabe lidar direito com situações como aquela.
Na semana anterior ele tinha ido lá em casa. Eu tinha levado um pé na bunda do meu namorado e ele foi me consolar como qualquer bom irmão faria. No meio de todas as pieguices que meus lamentos melodramáticos poderiam produzir eu disse a ele que o fulaninho tinha arrancado o meu coração e batido no liquidificador. Meu irmão fez por mim aquilo que apenas um irmão mais velho poderia fazer e me disse que bateria meu coração novamente, adicionando cola para que cada pedaço voltasse para o lugar. Nós dois rimos da imagem sem sentido e toda a dor que eu sentia foi embora deixando atrás de si a mesma cumplicidade que tínhamos na infância.
No dia seguinte o fulaninho reatou o relacionamento, o que foi pura sorte porque naquela terça-feira foi ele quem conseguiu me manter em pé. Fomos juntos para o hospital e quando finalmente consegui falar com minha mãe eu já estava mais calma. Meus pais e minha irmã moram a mais de trezentos quilômetros daqui. Eu me mudei para uma ilha para ficar perto do meu irmão. Desde menina fui grudada nele, o que me rendeu o carinhoso apelido de chiclete. Eu me mudei no dia em que meu sobrinho nasceu e agora o vínculo que eu criara com seu pai na infância, ele criava comigo.
Eu não precisei passar pela porta de entrada do hospital para saber que eu deveria estar a quilômetros de distância dali. Fui recebida por uma comitiva de familiares, amigos, colegas de trabalho e nobres desconhecidos que se espantaram ao se dar conta que a pessoa responsável naquela situação era uma garota no início da faculdade, rabo de cavalo e todos os sonhos pela frente. Minha cunhada estava jogada no sofá da recepção intercalando os gemidos de desespero com calmantes alopáticos, homeopáticos e copos de água com açúcar.
Quando recebi a notícia da morte de meu irmão, ou melhor, quando ouvi o silêncio que anunciou a sua morte – porque para este tipo de notícia o silêncio fala mais do que qualquer palavra ensaiada –, me veio à cabeça a imagem esdrúxula de um coração sendo batido com cola num liquidificador velho e marrom.
As mesmas almas bondosas que mais cedo me fizeram sair do hospital, pois decidiram que eu era jovem de mais para entrar no quarto e ver meu irmão em coma; poderiam ter feito o favor de repassar a informação para a enfermeira que carregava consigo o formulário de doação de órgãos e precisava de alguém da família para a liberação. Sentada de frente para uma desconhecida, numa sala verde e mal ventilada de um hospital que não me dizia nada, com o poder de decidir se os órgãos vitais daquele que me vira crescer poderiam ou não salvar outras vidas, eu me dei conta que meus vinte anos tinham ido embora e no lugar deles ficou apenas uma fria força que eu precisei colocar no peito.
Eu nunca tinha comunicado uma morte antes. Como criança todas as mortes que eu vivenciara até ali habitaram o albergue do longínquo, alguma centelha do significado da finitude me faltava. Os velhos morrem, os parentes distantes cessam as visitas esporádicas para um café da tarde, acidentes acontecem em terras desconhecidas. Mas não com um jovem pai de uma criança de três anos. Não com quem faz parte da gente.
Eu não era mais uma criança e a juventude diagnosticada nos fios dos meus cabelos amarrados com uma presilha colorida foi trocada pela autoridade de irmã. Proibi a todos de darem qualquer tipo de informação aos meus pais, eles estavam na estrada e aquela única morte já seria suficiente para uma família por muitos anos. Resolvi pendências no hospital, funerária, IML e preferiria ter organizado mil velórios a ter que calar para os meus pais a notícia da morte de seu filho.
Eu não quis ver o corpo por mais que uma corja de abutres insistisse que eu, como irmã caçula, deveria me fazer presente ao lado dos meus pais. Plantar-me como um ás de paus do lado de um caixão que guardava a carcaça do que um dia fora meu irmão para saciar o desejo de luto daqueles que não faziam a menor ideia do buraco que eu tinha no peito. Meu irmão não estava naquela sala, não era um aglomerado de ossos, carne e sangue que não mais pulsava.
Não ver o corpo frio cercado de corvos desconhecidos e conhecidos era o mais significativo ato de protesto que eu poderia fazer naquele momento. Minha presença naquela sala não aliviaria a dor dos meus pais, não acalmaria a minha irmã, não mudaria em nada a realidade que teimava em gritar na minha cara como se eu fosse uma idiota capaz de esquecer. Fiz a única coisa que me cabia fazer e cuidei dos poucos que de fato se importavam. Sorri, abracei, consolei, cumpri com tudo o que código de etiqueta orienta.
Eu queria esmurrar a mesa, chutar a porta e berrar para que o show de horrores terminasse. Eu não queria ver a hipocrisia estampada em caras disformes, nem ouvir orações vazias ou canções carolas. Eu queria arrancar a dor do silêncio do meu pai e do olhar compreensivo que minha mãe lançava para os que insistiam em urrar que seu peito ardia. Como se a dor de qualquer um fosse capaz de ser maior do que a dos meus pais. Eu queria que minha irmã entendesse pelo menos por uma vez que eu precisava que ela soubesse lidar com situações como aquela.
Eu era só uma garota com um rabo de cavalo e, no entanto, era a única capaz de se fazer rocha. Eu via o carro rodopiar na pista a cada vez que eu fechava os meus olhos, mas os abria de novo, e de novo, porque a vida continua. Porque meu pai e minha mãe sofriam em silêncio a dor da perda que não era justo que conhecessem. Eu abria meus olhos e um sorriso porque minha irmã precisava que alguém não estivesse chorando. Eu abria o sorriso, os braços, o peito e gritava em silêncio para a vida que eu ainda estava ali, porque o meu sobrinho de três anos dormia na casa dos padrinhos sem saber o que tinha acontecido.
Calada, plantei dentro de mim a semente de uma árvore que eu regaria com o sal de minhas lágrimas. Porque não importa a falta avassaladora que ele me faz, é irrelevante o quanto eu gostaria que aquela terça-feira não tivesse existido, não faz a mínima diferença o quanto dói, existem coisas que simplesmente são mais importantes. Eu poderia gravar na memória um carro azul destruído, um corpo vazio e machucado ou o gosto amargo da perda. Mas eu prefiro me lembrar da tarde que passamos juntos assistindo filme, comendo pipoca e rindo de liquidificadores que só tinham significado para nós dois.
Ontem eu brincava na praia com meu sobrinho, já se passaram sete anos desde aquela terça-feira, nós estávamos construindo o maior castelo de areia a ser consumido por insensíveis ondas que pouco ligam para o esforço da engenharia infantil. Aos dez anos, entre inocência, conchas e água salgada, meu sobrinho me contou sua primeira desilusão amorosa. A coleguinha da escola, para quem ele levava bolachas a mais para oferecer durante o recreio, não poderia ir a sua festa de aniversário por um motivo qualquer que ele não engoliu. Subitamente me lembrei de corações sendo batidos com cola num liquidificador velho e marrom. De uma forma ou de outra a vida segue o seu rumo. Os pedaços remendados se assentam no lugar, mas marcas da cola, estas não desaparecem.
TAIANE MARIA BONITA. Sobre mortes e liquidificadores. In: Onisciente Contemporâneo. Porto Alegre: Editora Bestiário, 2016.
